A ficção científica é um sub-gênero que nasceu apenas com a temática científica tecnológica e estranha, mas veio a distopia e tomou conta do estilo sempre cheia de vaticínios e para nosso desespero muitas vezes certa. De qualquer forma essa estranheza é justamente o que torna a ficção científica uma ferramenta poderosa de análise social, filosófica e histórica. Quem corrobora isto é a autora Ursula K. Le Guin com o seu livro Os Despossuídos.
Le Guin cria uma narrativa profundamente filosófica que explora a dualidade entre dois sistemas políticos e sociais, o capitalismo e o socialismo refletindo sobre suas virtudes e falhas. Publicado em 1974, o livro leva para o campo da ficção científica as evidentes tensões e contradições que moldavam o mundo real, especialmente no contexto da Guerra Fria, quando ideologias polarizadas dominavam o cenário global.
O livro acompanha a jornada de Shevek, um físico brilhante oriundo de Anarres, um planeta governado por uma sociedade anarquista com forte inclinação socialista. Anarres foi colonizado por dissidentes de Urras, um planeta vizinho de economia capitalista. A sociedade de Anarres é, em sua essência, um experimento social, onde não há propriedade privada, e o coletivo sempre prevalece sobre o individual.
Em contrapartida, Urras é um planeta marcado por desigualdades extremas, onde o luxo e o consumismo coexistem com a pobreza e a opressão. A decisão de Shevek de viajar para Urras reflete sua tentativa de romper as barreiras do isolamento de Anarres, ao mesmo tempo que representa um questionamento sobre os limites da liberdade individual e coletiva em ambos os mundos.
Ao longo do livro, Le Guin navega entre os dois mundos e suas filosofias conflitantes, colocando Shevek como um ponto de tensão entre a utopia socialista e a distopia capitalista. Sua busca por um equilíbrio entre liberdade e justiça social torna-se o eixo central da narrativa.
Le Guin usa Anarres e Urras como metáforas para os sistemas sociais que definiram o século XX — o socialismo e o capitalismo —, e expande essa dualidade de forma a refletir dilemas ainda atuais. Urras, com suas semelhanças ao capitalismo ocidental, é opulento, produtivo, mas também profundamente injusto. Em contrapartida, Anarres, com seu idealismo socialista, oferece igualdade e cooperação, mas à custa da liberdade individual e da inovação criativa.
Anarres é construído com base na ausência de propriedade privada, onde o conceito de “meu” é quase inexistente. As pessoas vivem em comunas, compartilham recursos e, teoricamente, todos têm o mesmo nível de acesso às necessidades básicas. Le Guin apresenta os desafios e falhas desse modelo utópico. A burocracia que surge para manter a igualdade sufoca a criatividade e reprime aqueles que desafiam a ordem, como Shevek. Assim, Anarres, apesar de sua aparência igualitária, apresenta fissuras que tornam o “paraíso socialista” uma distopia disfarçada.
Por outro lado, Urras simboliza o capitalismo em seu auge. A riqueza acumulada por uma elite é contrastada com a pobreza extrema da maioria, evidenciando a exploração e a desigualdade. No entanto, a sociedade de Urras, mesmo com sua brutalidade, é vibrante e inovadora, atraindo Shevek por seu dinamismo e promessa de liberdade criativa. Ela expõe seus males — a exploração de classes inferiores, a desigualdade de gênero e a militarização da sociedade. Em Urras, a liberdade individual é reservada àqueles que detêm o poder econômico. A mobilidade social é quase inexistente, e o progresso técnico serve para reforçar o status quo, não para promover o bem-estar geral.
O embate entre Anarres e Urras pode ser visto como uma alegoria das tensões entre sociedades socialistas e capitalistas do século XXI, onde a desigualdade e a liberdade continuam sendo questões centrais.
No mundo atual, países capitalistas enfrentam crises de desigualdade social e degradação ambiental, enquanto regimes socialistas ou híbridos frequentemente lutam contra a estagnação econômica e a repressão política. Assim desta mesma forma são retratados Anarres e Urras, Le Guin não romantiza o socialismo anarquista, tampouco celebra o capitalismo, mas serve-se de analogias e metáforas para expor como o aparato tecnológico é utilizado nas duas situações antagônicas.
A obra de Le Guin confirma o fato de que nenhum sistema é isento de falhas. Ambos os mundos idealizados por Le Guin falham em conciliar os desejos individuais com as necessidades coletivas.
Ursula K. Le Guin é até hoje considerada uma das maiores autoras do gênero de ficção científica. Escreveu também A Mão Vermelha da Escuridão com temática distópica e disruptiva. Aproveite e conheça mais das suas obras.
Paulo Albuquerque – Formado em Tecnologia Florestal, instrutor de informática e conectado em Literatura, Sci-Fi e Cultura Pop.
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