Bola de Sebo (1880), uma das mais célebres obras de Guy de Maupassant, é um conto que se passa durante a Guerra Franco-Prussiana, onde um grupo de passageiros foge da ocupação alemã em uma diligência. Entre os viajantes está Elisabeth Rousset, mais conhecida como “Bola de Sebo”, uma cortesã que por ser gorda e muito redonda é desprezada pela maioria da sociedade “repleta de virtudes” em uma pequena cidade da Normandia onde vive.
A cidade vai muito bem com sua vidinha até a chegada do exército prussiano, então representantes da burguesia, comerciantes e religiosos decidem fugir. As famílias mais ricas da cidade alugam um carro para fugir da invasão. No entanto, sem que se saiba exatamente como, nele também se instala a mais famosa prostituta da cidade, apelidada de Bola de Sebo, por ser gorda e muito redonda. Os homens ficam embaraçados e as senhoras ficam indignadas. Resolve-se ignorar a presença da moça. Contudo, logo todos começam a sentir fome. Apenas Bola de Sebo teve a ideia de trazer um saco de provisões, que ela oferece aos demais. Relutantemente, eles aceitam.
Este comboio é retido em uma estalagem por um oficial prussiano que se recusa a deixá-los partir até que Bola de Sebo ceda aos seus desejos, a situação revela o caráter hipócrita dos companheiros de viagem. Inicialmente, todos se mostram ultrajados com a presença dela, mas, conforme o tempo passa e o conforto de suas viagens é ameaçado, esses mesmos personagens pressionam Bola de Sebo a sacrificar sua dignidade pelo bem do grupo. Após ceder, ela é novamente desprezada por aqueles que foram beneficiados por seu ato de sacrifício.
A protagonista, Bola de Sebo, é inicialmente desprezada por seu ofício. Ela é vista como inferior, uma figura moralmente reprovável que não se encaixa nas normas sociais respeitáveis do grupo sempre escanteada. Contudo, à medida que as necessidades do grupo se tornam mais urgentes, essa mesma sociedade “respeitável” não hesita em explorá-la para garantir seu próprio conforto. O sacrifício de Bola de Sebo, que reluta mas acaba cedendo, revela que a moralidade da burguesia é maleável, ajustando-se conforme as conveniências. Maupassant expõe, através de sua narrativa, que os valores burgueses de decência e honra são nada mais que uma fachada que se desmorona sob pressão.
Bola de Sebo é, paradoxalmente, a personagem com maior integridade moral em todo o conto. Embora seja a figura marginalizada e desprezada, ela exibe mais compaixão e solidariedade do que seus companheiros. Ela compartilha sua comida com todos, mesmo com aqueles que a humilham. A hipocrisia dos burgueses é clara: os valores de caridade cristã que tanto exaltam são esquecidos quando é uma “prostituta” que encarna essas virtudes.
Maupassant também critica a capacidade da sociedade de manipular aqueles que estão em situações de vulnerabilidade. O grupo de passageiros usa de sua influência moral e pressão psicológica para fazer com que Bola de Sebo se submeta ao oficial prussiano, recorrendo a argumentos manipuladores sobre o “bem maior” e o “sacrifício heroico”, como se seu sofrimento fosse um dever em prol do grupo. Mais uma vez, podemos encontrar ecos disso no mundo contemporâneo, onde muitas vezes os menos privilegiados são pressionados a fazer sacrifícios pelos que detêm poder, sem receber reconhecimento ou recompensa após cumprirem seu papel.
Há quem diga no meio literário que a personagem criada por Chico Buarque em “Gene e o Zeppelin” na Ópera do Malandro é espelhada e Bola de Sebo. Maupassant cria uma obra que oscila entre o drama e o picaresco com boas doses de Realismo já presente na literatura da época e utiliza Bola de Sebo como uma incisiva crítica à hipocrisia moral da sociedade burguesa da época, e suas lições continuam ressoando no cenário contemporâneo. O conto desnuda a contradição entre os valores superficiais que a sociedade defende publicamente e suas ações privadas quando interesses pessoais estão em jogo.
Paulo Albuquerque – Formado em Tecnologia Florestal, instrutor de informática e conectado em Literatura, Sci-Fi e Cultura Pop.
Foto: Reprodução