Nos anos 1920 e 1930 a Indochina Francesa era uma região que englobava os atuais Vietnã, Laos e Camboja. Os franceses ocupavam os cargos de poder, enquanto a população local era relegada a posições subalternas. A elite colonial vivia em enclaves luxuosos, como Saigon e Hanói, enquanto a maioria da população enfrentava pobreza e exploração. Havia também o ambiente de corrupção, consumo de ópio e prostituição.
Este contexto é o pano de fundo para o livro “O Amante” de Marguerite Duras de 1984. O livro nos conduz a um cenário complexo e opressivo: a Indochina Francesa marcada pelo colonialismo, desigualdade social e por rígidos padrões morais.
A história se passa em Saigon, onde Marguerite, uma adolescente de família pobre, encontra no amante chinês uma fuga de sua realidade opressiva. Ele, por sua vez, é um estrangeiro em sua própria terra, um homem rico mas marginalizado pela elite colonial por sua etnia. O relacionamento dos dois é marcado por uma tensão constante entre o desejo e as convenções sociais, entre a liberdade individual e os grilhões da moralidade da época.
Marguerite tem uma mãe autoritária e emocionalmente instável e busca formas de escapar de sua realidade e de afirmar sua independência.
Por um outro lado, O Amante Chinês é um homem rico e dividido entre o desejo de pertencer à sociedade colonial e a consciência de sua exclusão. Sua relação com a jovem é tanto uma afirmação de poder quanto uma busca por afeto e reconhecimento.
A sociedade retratada em O Amante é profundamente hierarquizada e hipócrita. A elite colonial francesa impõe padrões morais rígidos, mas vive em um ambiente de corrupção e exploração. Os chineses e os nativos são tratados como cidadãos de segunda classe. A moralidade sexual é particularmente repressiva, especialmente para as mulheres, que são julgadas e controladas por seus corpos e desejos.
Duras tece uma atmosfera densa e melancólica, onde o calor úmido do clima tropical passa a ser um personagem importante do livro guiando o relacionamento de Marguerite com o bilionário chinês, fazendo isso tudo saltar das páginas com mormaço, tédio e marasmo.
“Deixe-me contar de novo, tenho quinze anos e meio. Uma balsa cruza o Mekong. A imagem permanece durante toda a travessia do rio. Tenho quinze anos e meio, não há estações naquele país, vivemos uma única estação, quente, monótona, estamos na longa zona tórrida da Terra, sem primavera, sem renovação”.
A Indochina de Duras é um lugar estagnado onde nada acontece e onde todos estão sufocados pelo clima e pela geografia.
“(…) Tudo cresceu à nossa volta. Não há mais crianças montadas nos búfalos, nem em outros lugares. Somos tomados nós também de estranheza e a mesma lentidão que envolveu minha mãe também nos envolveu. Não ouvimos nada, olhando a floresta, esperando, chorando. As terras da planície estão definitivamente perdidas, os empregados cultivam as partes do alto, deixamos para eles o arroz com casca, permanecem lá sem receber salário, moram nas palhoças que minha mãe mandou construir. Eles nos amam como se fôssemos membros de suas famílias, eles agem como se vigiassem nosso bangalô e realmente o vigiam. Não falta nada à pobre louça. O telhado apodrecido pela chuva continua a desfazer-se. Mas os móveis estão limpos. E o desenho da casa la está, puro como um quadro, visível da estrada. As portas são abertas todos os dias para que o vento seque a lenha. E fechadas à noite para evitar que entrem os cães vadios, os contrabandistas das montanhas”.
O erotismo também está presente como um elemento marcante da obra. Duras descreve o desejo de maneira crua e poética ao mesmo tempo, mas tem muita habilidade de retratar este erotismo ligado aos temas centrais do livro, como poder, vulnerabilidade, identidade e transgressão. Marguerite, apesar de sua idade, é retratada como alguém que exerce certo controle sobre o amante, usando seu corpo e sua juventude como moeda de troca em um mundo onde ela tem pouco poder.
A obra é considerada de caráter autobiográfico visto que a autora Marguerite Duras, de fato, nasceu no Vietnã, nos arredores de Saigon, pouco antes do estouro da Primeira Guerra, em 1914, que na época ainda era uma colônia francesa “Indochina”.
Duras também foi roteirista e cineasta e criou outras obras que foram filmadas como Hiroshima Mon Amour (1959). Em 1992, O Amante foi adaptado para o cinema por Jean-Jacques Annaud. Deixou-nos um legado tanto na literatura quanto no cinema. Seus livros assim como os filmes que ela mesma dirigiu, são marcados por uma abordagem poética, experimental e profundamente reflexiva.
Paulo Albuquerque – Formado em Tecnologia Florestal, instrutor de informática e conectado em Literatura, Sci-Fi e Cultura Pop.
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