O início do século XX foi o período que viu surgir movimentos de esquerda e anarquia na América. O Partido Socialista da América, por exemplo, foi fundado em 1901 e pregava a nacionalização das indústrias, a redução da jornada de trabalho, o fim do trabalho infantil e a criação de um sistema de previdência social. Embora nunca tenha conquistado o poder nacional, o partido teve influência significativa em cidades industriais e entre sindicatos.
Uma das obras que mostrou o ideal revolucionário na América foi sem dúvida “O Tacão de Ferro” de Jack London. Publicado em 1908, O Tacão de Ferro é uma obra distópica escrita por Jack London, um autor conhecido por suas narrativas em tons de aventura e sempre engajadas.
O livro contesta o capitalismo desenfreado e tece uma previsão sombria de um futuro onde uma oligarquia empresarial, chamada de “Tacão de Ferro”, domina a sociedade, reprimindo a classe trabalhadora. A história é narrada por Avis Everhard, esposa do protagonista Ernest Everhard, um revolucionário socialista que lidera a resistência contra o regime opressor. O enredo se passa em um futuro imaginado, mas reflete as tensões sociais e políticas dos Estados Unidos no início do século XX, quando o país vivia uma rápida industrialização, desigualdades gritantes e o surgimento de movimentos trabalhistas e socialistas.
A obra é estruturada como um manuscrito descoberto séculos depois, o que dá ao leitor uma sensação de urgência e imediatismo, como se estivéssemos diante de um alerta para o futuro. A trama é repleta de revoluções, conspirações e confrontos entre as classes, culminando em uma visão sombria de um mundo onde a justiça social parece sempre estar fora de alcance.
A história começa com uma introdução de um editor fictício, que explica que o manuscrito de Avis Everhard foi encontrado em um futuro distante, após a queda do “Tacão de Ferro”, o regime oligárquico que dominou os EUA. O manuscrito é uma memória pessoal e política, narrando os eventos que levaram à ascensão do Tacão de Ferro e à resistência liderada por Ernest Everhard que é um intelectual e revolucionário carismático. Ele emerge como líder da resistência contra a oligarquia empresarial que controla o país. Ele é casado com Avis, que inicialmente pertence à elite, mas é gradualmente convertida às ideias socialistas de Ernest.
Avis é uma oligarca que sofre uma transformação de uma mulher da elite para uma revolucionária comprometida em um dos momentos mais poderosos do livro. Sua jornada simboliza a importância da conscientização política. Em meio a agitações, Ernest confronta um grupo de intelectuais e empresários, expondo as contradições do capitalismo e defendendo a necessidade de uma revolução socialista, naquilo que ficou conhecido como “O Discurso de Ernest”. Há uma revolta massiva dos trabalhadores em Chicago, que é brutalmente reprimida pelo Tacão de Ferro. Esse evento marca o início de uma guerra civil entre as classes.
Tanto a transformação de Avis quanto o discurso de Ernest e a Revolta de Chicago vão plantar sementes de conscientização em uma América até então predominantemente capitalista. Estes eventos culminam no Fim da Resistência: A narrativa termina com a derrota temporária da resistência, mas deixa em aberto a possibilidade de um futuro revolucionário. O manuscrito de Avis é descoberto séculos depois, sugerindo que a luta por justiça social nunca termina.
London cria para os aristocratas, industriais e poderosos da América o termo Tacão de Ferro como “a expressão enérgica para designar a oligarquia”. A oligarquia pisoteia e reprime sem deixar dúvidas de quem são os donos do poder.
“Esmagaremos todos os revolucionários com o nosso tacão, e espezinhá-los-emos. Somos os senhores do mundo: o mundo é nosso e continuará a ser nosso. Quanto às hostes dos trabalhadores, vivem na lama desde o início da história. Continuarão na lama enquanto detivermos o poder. É essa a palavra. É a rainha das palavras: poder. Não Deus, nem dinheiro, mas poder”.
O Tacão de Ferro ascende ao poder e cria uma ditadura oligárquica que mantém o país sob a bota durante trezentos anos, esmagando dissidentes e fazendo dos tribunais, da imprensa e dos políticos os seus fantoches. Cntrola toda a sociedade, condenando o povo à miséria.
Junto com “As Vinhas da Ira” de Steinbeck, “O Tacão de Ferro” é o que mais se aproxima do contexto europeu em romantismo, anarquia e a condição do imigrante proletariado. Importante notar que na América do início do século passado não existia lugar para anarquia e socialismo. Havia os magnatas alçando os EUA à condição de pátria do capitalismo desenfreado, uma sociedade esfuziante e extremamente consumidora representada nas obras de Hemingway e Fitzgerald.
Jack London era uma figura complexa e contraditória. Poucos como ele representaram tão bem o sonho americano de riqueza e conquista. Tornou-se socialista convicto. Foi também um individualista que valorizava a força e a determinação. Sua vida foi marcada por aventuras, desde a corrida do ouro no Alasca ou trabalhando em um navio baleeiro até suas viagens pelo mundo, e essas experiências moldaram sua visão de mundo. London acreditava na luta pela justiça, mas também era cético em relação à natureza humana, o que se reflete na tensão entre esperança e desespero em O Tacão de Ferro.
Paulo Albuquerque – Formado em Tecnologia Florestal, instrutor de informática e conectado em Literatura, Sci-Fi e Cultura Pop.
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