Em 1991 José Saramago reinterpretou a história de Cristo utilizando um viés histórico e crítico, distanciando-se da tradição cristã. O período em que Jesus viveu foi marcado pelo jugo do Império Romano sobre a região da Judeia, onde a exploração econômica, a repressão e os levantes populares eram frequentes. A esta obra Saramago deu o nome de O Evangelho Segundo Jesus Cristo e o livro tornou-se uma obra provocativa da história de Jesus de Nazaré. No romance, Saramago reconta a vida de Cristo sob uma perspectiva humanizada, destacando sua relação com Maria Madalena, suas angústias diante do destino imposto por Deus e sua consciência do sofrimento humano.
A narrativa inicia-se com um Cristo jovem, filho de um José atormentado pela culpa de não ter salvo as crianças massacradas por Herodes. Esse evento, inexistente nos Evangelhos canônicos, dá o tom ao livro, pois introduz um Jesus marcado pelo peso do sofrimento e pela incompreensão da vontade divina. Ele é conduzido não apenas por um chamado divino, mas também por forças terrenas e políticas.
A relação entre Deus e o Diabo é outro ponto central do romance. Para Saramago, essas figuras são partes de uma mesma entidade, e Deus é retratado como uma força manipuladora, que deseja a expansão de sua influência mesmo às custas do sofrimento humano. Essa visão desafia a concepção tradicional de um Deus bondoso e questiona a lógica do sacrifício de Jesus. Outro aspecto importante é a presença de Maria Madalena, que é retratada como a primeira pessoa a compreender verdadeiramente Jesus, em um relacionamento que humaniza ainda mais sua figura. Saramago retira o contexto divino e Jesus é atormentado por sua própria humanidade e a sua obrigação messiânica.
Como no trecho em que José, pai de Jesus mantem relações com Maria, Jesus é gerado com uma descrição naturalista:
“Como se se movesse no interior da rodopiante coluna de ar, José entrou em casa, cerrou a porta atrás de si, e ali ficou encostado por um minuto, aguardando que os olhos se habituassem à meia penumbra. Ao lado dele, a candeia brilhava palidamente, quase sem irradiar luz, inútil. Maria, deitada de costas, estava acordada e atenta, olhava fixamente um ponto em frente, e parecia esperar. Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu a parte inferior da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre, quando ele já se vinha debruçando e procedia do mesmo modo com sua própria túnica, e Maria, entretanto, abriu as pernas, ou as tinha aberto durante o sonho e dessa maneira as deixara ficar, fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que conhece os seus deveres. Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas umas e outras para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado. Tendo pois saído para o pátio, Deus não pôde ouvir o som agónico, como um estertor, que saiu do varão no instante da crise, e menos ainda o levíssimo gemido que a mulher não foi capaz de reprimir. Apenas um minuto, ou nem tanto, repousou José sobre o corpo de Maria. Enquanto ela puxava para baixo a túnica e se cobria com o lençol, tapando depois a cara com o antebraço, ele, de pé no meio da casa, de mãos levantadas, olhando o tecto, pronunciou aquela sobre todas terrível bênção, aos homens reservada, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo por não me teres feito mulher. Ora, a estas alturas, Deus nem no pátio devia estar, pois não tremeram as paredes da casa, não desabaram, nem a terra se abriu. Apenas, e pela primeira vez, se ouviu Maria, e humildemente dizia, como de mulheres se espera que seja sempre a voz, Louvado sejas tu, Senhor, que me fizeste conforme a tua vontade, ora, entre essas palavras e as outras, conhecidas e aclamadas, não há diferença nenhuma, repare-se, Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra, está patente que quem lhe disse isto, podia, afinal, ter dito aquilo. Depois, a mulher do carpinteiro José levantou-se da esteira, enrolou-a lentamente com a do marido e dobrou o lençol comum”.
Saramago continua em descrições nada divinais sempre aproximando Jesus de tudo o que é humano e orgânico:
“O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por este mesmo e único motivo.”
Se hoje em dia se tornou corriqueiro associar uma paixão entre Jesus e Maria Madalena, no livro de Saramago isso é bem claro. A releitura de Saramago confere à narrativa bíblica uma nova camada de profundidade, retirando a aura de infalibilidade de Jesus e transformando-o em um personagem mais próximo do homem comum, atormentado por suas decisões e pelo peso do destino.
Apesar de ser ateu Saramago não mexe com a crença de um Jesus santificado e não desrespeita o Evangelho, também não modifica o final da história cumprindo os mistérios dolorosos da Via Crucis. A polêmica gerada pelo livro foi tamanha que o governo português vetou sua candidatura a um prêmio literário europeu. Por meio de sua prosa densa e crítica, Saramago transforma a história de Cristo em um relato humano e realista, oferecendo ao leitor uma perspectiva que foge do misticismo e entra no campo da existência humana e de suas ambiguidades.
José Saramago foi um dos maiores escritores da literatura contemporânea, reconhecido por sua prosa singular, tanto que em alguns de seus livros é muito comum encontrar trechos sem pontuação com parágrafos gigantescos.
Paulo Albuquerque – Formado em Tecnologia Florestal, instrutor de informática e conectado em Literatura, Sci-Fi e Cultura Pop.
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