Vivemos tempos em que o crédito, antes ferramenta de ascensão e planejamento, tornou-se, para muitos brasileiros, uma armadilha silenciosa. As vitrines digitais, os limites facilitados, os carnês intermináveis e as ofertas sedutoras escondem uma realidade cruel: em dezembro de 2024, mais de 76% das famílias brasileiras estavam endividadas e, dessas, cerca de 15% comprometiam mais da metade da renda apenas para manter os pagamentos em dia. Não se trata de má gestão financeira, como muitos ainda insistem em acreditar. Trata-se, na maioria das vezes, de sobrevivência.
A Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento, representa um verdadeiro avanço civilizatório. Ela dá nome ao problema e reconhece que o devedor não é, necessariamente, um inadimplente contumaz, mas alguém que, por razões alheias à própria vontade, como desemprego, enfermidades, inflação ou juros abusivos, se vê sem condições de honrar seus compromissos sem comprometer o mínimo necessário para viver com dignidade. Essa mudança de perspectiva nos convida a enxergar o consumidor não mais como mero número em planilhas bancárias, mas como sujeito de direitos, com história, limites e necessidades reais.
O conceito de “mínimo existencial”, agora incorporado ao Código de Defesa do Consumidor, é uma conquista jurídica e humanitária. Ele impõe às instituições financeiras o dever de responsabilidade ao conceder crédito. Não se trata de cercear a atividade econômica, mas de exigir prudência, ética e respeito. O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.634.851/SP, já reconheceu que oferecer crédito a quem, evidentemente, não possui condições de pagamento, especialmente aposentados e pessoas em situação de vulnerabilidade, é prática passível de responsabilização civil. Uma decisão que fortalece a atuação da Justiça como guardiã da equidade.
Outro avanço relevante previsto na nova legislação é a possibilidade de repactuação de dívidas por meio de audiências coletivas, organizadas com o apoio de Procons, Defensorias Públicas e Tribunais de Justiça. Inspirado na lógica da recuperação judicial das empresas, esse modelo agora se estende ao cidadão comum. Durante esses mutirões, é possível renegociar de forma estruturada e transparente, reunindo todos os credores à mesa e evitando que o consumidor afunde ainda mais em juros abusivos e cobranças desproporcionais. Trata-se do Estado promovendo cidadania com responsabilidade.
Contudo, é preciso reconhecer: a norma, por si só, não é suficiente. Sem educação financeira, transparência nos contratos e compromisso ético por parte das instituições, o ciclo do superendividamento tende a se perpetuar. O crédito deve ser concedido com clareza, sem letras miúdas que escondam encargos ou cláusulas abusivas. E o consumidor, por sua vez, precisa ter acesso a informações claras e orientações adequadas para tomar decisões conscientes. Políticas públicas que promovam essas práticas são fundamentais para romper a lógica da exclusão financeira.
Proteger o consumidor superendividado é garantir a possibilidade real de recomeço. É permitir que uma família reorganize sua vida financeira sem abrir mão do essencial: alimentação, moradia, saúde e educação. É reafirmar, mesmo em tempos de crise, que a dignidade humana não se concede. Ela se preserva. É base de qualquer sociedade justa, equilibrada e verdadeiramente democrática.
Seguiremos acompanhando de perto os desdobramentos desta e de outras pautas que impactam diretamente o cotidiano da população brasileira. Convido você, leitor e leitora do Fato360, a retornar na próxima semana, quando traremos uma nova reflexão jurídica ou uma novidade relevante sobre direitos e deveres no dia a dia.
Até lá. Saúde, informação e justiça a todos.
Marcelo Souza é advogado, sócio do Escritório Souza – Advocacia EmpresarialE-mail: contato@souzaeatem.adv.br
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