EDITORIAL

A cortina de fumaça e o desvio de foco

REDAÇÃO

16/05/2025 as 9:56 pm

Caros leitores,

Nosso editorial costuma sair aos domingos, como manda o figurino — e o bom senso. Mas, desta vez, não foi possível. O Brasil, esse país que nunca decepciona na arte de misturar o surreal com o escandaloso, conseguiu me tirar da rotina nesta sexta-feira. O motivo? Um bebê. De plástico. Que, segundo as redes sociais, teria direito — ou não — a assento preferencial no transporte público. Sim, você leu corretamente. E, enquanto o país se entretém discutindo os privilégios de bonecas hiper-realistas, um rombo bilionário no INSS segue impune em seu desvio de rota — ou melhor, de recursos.

Não surpreende que o tema tenha viralizado. O brasileiro, já exausto da realidade, parece ter encontrado nos bebês reborn uma nova forma de escapismo. Mas há algo profundamente patológico nessa comoção coletiva. A pauta ganhou peso emocional, ético e até filosófico nas timelines — como se o destino da nação dependesse da presença ou não de uma boneca no banco azul. Enquanto isso, o dinheiro que deveria estar pagando aposentadorias desaparece como mágica, e ninguém se mobiliza com a mesma fúria para discutir o que realmente importa.

Platão, em sua célebre alegoria da caverna, já alertava: somos reféns das sombras projetadas diante de nós. A diferença é que, agora, essas sombras têm algoritmo, engajamento e trilha sonora do TikTok. A tragédia brasileira não se resume à corrupção. Está na nossa extraordinária capacidade de nos deixar distrair por bobagens enquanto os cofres públicos são esvaziados diante dos nossos olhos.

E aí entra um fator agravante: a mídia — muitas vezes cúmplice entusiasmada dessa guerra cultural de superficialidades. Não se espante se, em breve, surgir a chamada: “Vem aí: Meu Reborn, Minha Vida — a nova novela das oito”. Afinal, transformar o absurdo em entretenimento é um talento que, convenhamos, dominamos com maestria.

A fraude no INSS é um escândalo de proporções épicas. Bilhões de reais evaporaram em um sistema que parece feito para não funcionar. Isso atinge diretamente aposentados, pensionistas, gente que trabalhou a vida inteira e agora é enganada justamente quando mais precisa do Estado. Mas o brasileiro médio, entre um meme e outro sobre bonecas que não choram, também não parece disposto a se comover pelos idosos reais.

Nietzsche já dizia que o homem moderno tenta preencher o vazio existencial com barulho. Hoje, esse barulho é digital. E, por trás da comoção com bonecas, existe uma dor legítima: a ausência de vínculos, o colapso da empatia, a falência afetiva da nossa sociedade. Mas transformar isso em pauta nacional enquanto a Previdência sangra é uma escolha — e uma escolha desastrosa.

O problema não está na boneca em si. Está no que ela representa: um país que prefere a fantasia ao enfrentamento dos fatos. E pior — uma nação que perdeu o senso de urgência, incapaz de distinguir o que é essencial do que é apenas bizarro.

O verdadeiro desafio, hoje, é resistir à distração. É manter o olhar voltado para onde dói. Para onde custa. Para onde exige responsabilidade e coragem. Porque, enquanto discutimos se boneca tem CPF, o Brasil segue perdendo sua carteira de identidade.

Um abraço crítico — e vigilante.

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